Pensemos numa mulher moderna : inteligente, elegante, segura de si, financeiramente independente, profissionalmente realizada, cidadã dum país democrático. Imaginemos essa mesma mulher aos pés do homem que ama, beijando-lhos ; ou amarrada, possuída, constrangida ; ou torcendo-se de dor sob a vergasta, sabendo que no fim vai agradecer o castigo e abrir o corpo a quem lho aplicou.
Para muitas pessoas as duas imagens não podem ser sobrepostas. A primeira releva da modernidade, da liberdade, da justiça, do progresso, da razão ; a segunda do atavismo, da opressão, da ignorância, do abuso e da tirania, quando não da patologia psicológica ou social. Para participar numa cena como a descrita, um homem tem que ser um sádico sem escrúpulos, um sociopata perigoso, um criminoso psicótico, um monstro ; e uma mulher, para participar voluntariamente nessa cena, tem que ser igualmente um monstro : monstruosamente passiva, desprovida de dignidade, patologicamente dependente.
E contudo elas existem. E não são monstros : as que conheci até agora foram, quase sem excepção, invulgarmente inteligentes, eticamente exigentes, sensíveis nos relacionamentos, criativas e fortes nas convicções. Personalidades fortes, originais, e por isso muito diferentes entre si.
O que pode fazer duma destas mulheres uma escrava? Uma propensão especial para o masoquismo e para o sofrimento? Nunca conheci uma escrava que não quisesse ser feliz. Uma convicção inabalável de que os homens são intrinsecamente superiores ás mulheres e por isso merecem toda a deferência por parte destas? Deixem-me rir : o mito da superioridade masculina está morto e enterrado há várias décadas, e nem a escrava mais dedicada e submissa acredita nele. Quando muito acreditará na superioridade do seu Senhor sobre todos os outros homens, e portanto sobre ela própria ; mas iria jurar que mesmo isto não é sempre o caso.
Nunca notei, além disto, que a decisão de uma mulher se submeter completamente a um homem (ou a outra mulher) tivesse alguma coisa a ver com o seu carácter mais introvertido ou mais extrovertido, com a sua filosofia mais espiritual ou mais materialista, com as suas opções políticas mais progressistas ou mais conservadoras. Mas notei sempre um fundo de alegria existencial e de auto-confiança : lamúria não é com elas.
Numa relação Senhor/escrava há um aspecto moral – ou, se quisermos, kármico – que é inescapável : tudo o que a escrava dá tem um retorno. Retorno este que lhe virá do seu Senhor, se ele o souber dar, ou de outro lado se ele o não souber. A opção pela dádiva de si pode ser, e nalguns casos é, uma opção moral.
Por outro lado, a relação Senhor/escravo é a mais brutalmente assimétrica de entre todas as relações humanas. Mas assimetria não é sinónimo de desequilíbrio : desequilibrada, mesmo que quase simétrica, é por exemplo uma relação de abuso conjugal. Pelo contrário, o equilíbrio na assimetria é o equilíbrio mais satisfatório, porque não é estático, mas dinâmico. A opção duma mulher (ou dum homem) pela escravidão pode também ser, e nalguns casos é, uma opção estética.
Mas nada disto corresponde ao essencial da questão. O essencial da questão não é a opção moral, quer da escrava, quer do Senhor ; nem a opção estética ; mas sim, na minha opinião, o puro gozo de jogar o jogo de amor mais difícil e complexo, mais sério e apaixonante que é possível entre dois seres humanos.
Não me interpretem mal : eu escrevi «jogo», não escrevi «brincadeira». No tipo de relação a que me refiro joga-se, sim, e joga-se com paixão, alegria e empenho ; mas joga-se nada menos que a felicidade e o sentido da vida de (pelo menos) duas pessoas. Não é brincadeira nenhuma.
No cerne desta complexidade está a dinâmica senhor/escravo, observada desde há séculos por artistas (pensemos nas «Bodas de Fígaro», de Mozart, ou no filme «O Criado», de Joseph Losey) e estudada desde há décadas por sociólogos e psicólogos. Consiste nisto esta dinâmica : o escravo acaba sempre, numa certa medida, por ser senhor do seu Senhor, e o Senhor acaba sempre por ser Escravo do seu escravo. Isto, é claro, apenas em aspectos parcelares e acessórios da relação : descontando algum caso extremo, o senhor verdadeiro continua a ser o Senhor nominal e o escravo verdadeiro continua a ser o escravo nominal.
A inversão de papéis verifica-se sempre, independentemente da vontade de qualquer dos dois intervenientes. Na ópera de Mozart o criado conspira para adquirir o poder, no filme de Losey não conspira, ou conspira apenas para servir melhor : o resultado é o mesmo. Mesmo que o Senhor não queira, e que o próprio escravo o tente evitar a todo o custo, há sempre aspectos da relação em que o Senhor acaba por estar ao serviço do escravo. Gerir esta dinâmica de modo a que a relação não se inverta globalmente, por um lado ; e que as suas manifestações particulares contribuam para o êxito, e não para o fracasso, da relação, é um desafio fascinante e é a principal arma de que Senhor e escrava dispõem para impedir que a sua relação caia na rotina e no entorpecimento.
Qualquer Senhor digno desse nome sabe, ou pressente, a verdade do que acabo de escrever. Sabe que a sua escrava quer ser feliz e merece ser feliz ; sabe que provavelmente não é superior à sua escrava, nem em inteligência, nem em conhecimento, nem em beleza, nem em força de vontade, nem em generosidade ; pode quando muito aspirar a sê-lo em sabedoria, já que vai ter a responsabilidade de a guiar : mas nem isso está garantido à partida.
Um Senhor que se preze sabe ou pressente o imenso valor da dádiva que recebe, e sabe que tem que dar em troca algo de valor comparável ; sabe ou pressente que lhe compete a ele, mais do que à sua escrava, assegurar o equilíbrio perfeito na mais assimétrica de todas as relações ; e sabe que o jogo que joga com ela é um jogo em que, ou os dois ganham, ou os dois perdem. E se perdem, perdem tudo.
Um Senhor verdadeiro exige da sua escrava que o sirva, submetendo-se completamente – e exige-o com todo o direito. Mas também sabe, embora por motivos óbvios não o diga, que também ele a serve, dominando-a.
Por isso a prioridade absoluta de um verdadeiro senhor é a felicidade e a realização pessoal da sua escrava. Não é o seu próprio prazer (esse é a prioridade dela). Não é a sua carreira, nem o trabalho, nem o dinheiro, embora tudo isso seja importante. Não é o poder político nem a posição social. É, repito, a felicidade e a realização pessoal da sua escrava. Esta prioridade não torna o Senhor mais indulgente, é claro, nem menos exigente, nem mesmo menos cruel ; pelo contrário, torna-lhe claro que quando castiga e faz sofrer a sua escrava não está necessariamente a exercer um direito, pode estar em vez disso, ou além disso, a cumprir um dever.
E aqui peço de novo para não ser mal interpretado: o direito da escrava é à felicidade, não é ao prazer. Como a minha primeira escrava me escreveu uma vez, e como eu depois disso sempre disse às outras, uma escrava não tem direito ao prazer. Nada impede que o Senhor lho dê, e intensíssimo, e frequente, mas neste campo a decisão é dele e só dele. A escrava, pelo contrário, não tem qualquer poder de decisão : está sempre ao serviço do prazer do seu Dono, e de facto não tem sequer outra razão de existir.
Uma das principais diferenças entre uma relação Senhor/escrava e uma relação «normal» está nisto: um cônjuge, um amante, um namorado, tendem a ir prestando cada vez menos atenção ao seu parceiro. É compreensível, é humano, é natural : o mundo em que vivemos, competitivo, materialista, fatigante, fatigado e descrente, não se compadece com paixões avassaladoras e muito menos com paixões eternas. Numa relação «normal» os amantes podem dar-se ao luxo da desatenção – pagando um preço, é claro. Esse preço é a rotina, a morte em vida, o desamor. Uma escrava, pelo contrário, sabe que tem que estar sempre atenta ao seu Senhor : às suas palavras, às suas ordens, aos seus desejos, aos seus estados de espírito. Caso não esteja sempre atenta pode ser punida, às vezes severamente. O Senhor, pelo seu lado, sabe que é responsável pela felicidade e pela realização pessoal de outro ser humano : também ele tem que estar sempre atento à sua escrava.
Numa relação Senhor/escrava o desamor não é uma opção. Consequentemente, num mundo em que cada vez mais a norma é o desamor, a relação Senhor/escrava é, no sentido rigoroso da palavra, anormal. Ainda bem. É esse o seu grande título de nobreza e o nosso grande motivo de orgulho.
(Publicado no Blogger a 16/08/05)
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