Dedicado à Eva, à Ró e à Kris, três Mulheres superiores.
Allegro con brio
“Eu agora era o Gino”.
Marta não pôde deixar de sorrir com a formulação escolhida pelo amante, mais própria das brincadeiras infantis do que do jogo de amor a que neste momento se entregavam. Gino era um dos papéis que Miguel gostava de representar quando faziam amor: um jovenzinho sedutor, mediterrânico na compleição, um efebo trigueiro, delicado de ossos mas com a musculação bem definida de um atleta. Nada disto, é claro, tinha grande semelhança com o corpo real deste quarentão já um pouco pesado que se debruçava sobre ela, sorrindo-lhe: mas os gestos do adolescente estavam lá todos, os modos, as inflexões de voz. Marta não teve dificuldade em ver Miguel tal como ele se lhe propunha à imaginação: os olhos e os cabelos muito pretos e brilhantes sobre a pele tisnada, os cílios longos, femininos, o sorriso impudente. E imaginou-o noutros tempos, sob um sol siciliano ou grego, coroado de louros, triunfante no dardo e na corrida: que prémio lhe poderia ela dar senão o seu próprio corpo de mulher madura?
Estavam os dois num pinhal à beira-mar. Para lá chegar tinham percorrido de carro um longo caminho de terra batida. À distância conseguiam ouvir o marulhas das ondas na praia semi-deserta, frequentada apenas por alguns raros pescadores; mas aqui entre as árvores não havia o perigo de serem surpreendidos, e gozavam o luxo de se estenderem nus ao sol, sobre a areia das dunas. A areia estava entremeada de ramos secos, aguçados, e de plantas espinhosas; e Marta, que mesmo nua calçava as sandálias quando precisava de se deslocar uns metros, admirava-se da inconsciência com que Gino caminhava descalço entre os espinhos. Que as roupas se lhes enchessem de palhas e pólen pouco a incomodava, ou a ele. Uma vez tinham chegado a ir à ópera depois de passarem a tarde na mata; e se ela, que morava em Lisboa, tinha podido passar por casa para mudar de roupa, ele tinha ido com as mesmas calças desportivas e o mesmo blusão com que se tinha deitado na erva.
Entre as árvores que rodeavam a clareira havia dois ou três pinheiros mansos, e dos arbustos desprendia-se um perfume agreste que poderia bem ter sido o mesmo quatro mil anos antes: e nus como estavam, sem roupas que os situassem na História, quem os poderia distinguir de um outro par de amantes que milénios antes tivesse procurado o mesmo lugar? Até a comida que tinham trazido com eles poderia ter alimentado esse outro par: pão escuro de trigo, queijo de cabra, uvas passas, vinho tinto, mel.
Assim como Gino era fisicamente diferente de Miguel, também Marta se sentia diferente na sua presença. O seu pequeno corpo grácil e delicado, fino e flexível na cintura, doce e arredondado nas linhas da silhueta, parecia tornar-se-lhe seco e anguloso como o de uma sibila na sua caverna; e o rosto expressivo parecia-lhe endurecido como o de quem passou toda a vida na praia, mulher e mãe de marinheiros, augurando naufrágios.
Gino era egoísta e sôfrego no amor; quando ele a abraçou Marta preparou-se para a sua investida de jovem macho, “espera, espera um pouco, deixa-me pôr esta toalha por baixo,” e ele, “sim, amor, sim,” mas sempre o sexo erecto como um aríete a bater-lhe às portas do corpo, uma cega cabeça de carneiro a exigir entrada. E estes cegos embates, afinal, ao lado, em cima, em baixo; o breve momento de pânico ao senti-los próximos da outra entrada, “não, por aí não, por aí não quero”; os pequenos lábios do sexo esmagados como pétalas, os pelos repuxados – afinal estes embates, e depois a abrupta transposição de um umbral ainda meio seco, impreparado, e por via desta impreparação tão definido como o hímen de uma virgem; os embates cegos, o abrupto romper por ela adentro como uma nova desfloração; toda esta refrega inábil acabava sempre afinal por dar lugar a um deslizar tão macio e tão suave como a mais macia penetração pelo mais suave dos amantes. Virginação e desvirginação no mesmo acto.
Ei-lo agora, Gino, já dentro de Marta, indo e vindo nela sem impedimento nem atrito. O cabelo revolto é nele o que mais invoca o adolescente, e precisa de ser cortado: já faz caracóis na nuca e sobre as orelhas, e algumas madeixas desordenadas colam-se-lhe à testa com o suor. Com um gesto terno Marta acaricia-lhe a face, num convite mudo a que descanse um pouco: que lhe pouse a cabeça sobre os seios, que modere o ímpeto. Depois ajeita o corpo debaixo do dele, flecte os joelhos, planta os pés no chão e prepara-se para encontrar em si própria, na sua resistência ao embate, o espírito do êxtase; já que não será ele, decerto, amante inábil e sôfrego, a fazê-lo descer sobre os dois.
Sempre que Miguel se lhe representa sob a forma de Gino Marta sabe que lhe compete a ela assegurar o seu próprio prazer. Para Gino, encontrar-se dentro dela, por cima dela, face a face, é maravilha suficiente e sempre nova; e não lhe ocorre que esta simples, maravilhosa circunstância a possa deslumbrar menos do que a ele. Mas este entusiasmo ingénuo é o que o torna querido ao coração de Marta. Na sofreguidão de Gino, no suspiro triunfal com que se lhe acolhe ao corpo, sente Marta a devoção de um jovem acólito pela Deusa longamente desejada.
Gino não é um homem do mundo; não tem no amor o apuro que num homem do mundo é afeição e respeito, mas também frieza e cálculo. Um amante mais experiente seria capaz de gerir tempos e ritmos, posições e ângulos de ataque, com sabedoria e crueldade, num jogo de dádiva e negação que lhe prolongasse o prazer e lho tornasse, à míngua de desenlace assegurado, insuportável. Mas de tais refinamentos contaremos mais tarde: em Gino seriam deslocados e talvez obscenos.
Marta não queria que o amante tivesse um orgasmo demasiado rápido, e sabia que fizesse ela o que fizesse o pénis que com tanta sofreguidão lhe procurava o fundo do corpo se manteria firme e erecto, ligeiramente curvado para cima, reteso e duro como o dum adolescente. Podia mudar de posição, ajeitar o corpo como entendesse, que ele seguir-lhe-ia sempre os movimentos e permaneceria dentro dela, cravado nela, inextricável. Por exemplo: um movimento das nádegas para trás, um recuo, um retrair do ventre, e Gino já não consegue penetrá-la tão fundo como quer. A pressão maior faz-se agora sobre a entrada da vagina e o movimento faz-se agora ao longo dos pequenos lábios, roçando-lhe o clitóris. Só falta segurá-lo, impedi-lo de recuperar aquele outro ângulo de ataque que lhe pede o desejo imaturo.
Marta vê perpassar na expressão do amante um trejeito de contrariedade: ainda bem, desexcitou-se um pouco, retardou o orgasmo. Para se fazer perdoar, beija-lhe a boca, e remexe-lhe o cabelo como a um miúdo travesso. Depois deixa de tentar controlá-lo: vem-lhe o orgasmo, explosão incerta, e já não lhe é possível saber o que é liberdade e o que é restrição nos movimentos dele. Livre de toda a referência à areia, ao mar, ao mundo, o ventre de Marta não é agora mais do que o lugar virtual de todas as posições que o sexo de Gino poderá ocupar no seu vai-vem frenético. Eis Marta perfeitamente móvel, já que nenhum constrangimento a detém; perfeitamente imóvel, já que nenhuma força a propele; ei-la em liberdade. Agora dá-se toda ao amante, que livremente a penetra, como quer, até onde quer, e se esvai nela em prazer e em riso, como um fauno à solta, triunfante.
Andante – Scherzo
Mas um gesto basta, uma palavra, um capricho, uma subtil modulação no estado de espírito dos amantes, ou então uma mudança de cenário, para que Gino desapareça e em seu lugar surja um dos outros: Baltazar, por exemplo. Num quarto de hotel, claro e arejado. Sentado como um Buda na poltrona ao lado da cama, fresco do duche, cheirando a água de Colónia, a pele amaciada com cremes, calçado com chinelos de pelica e envolto num largo roupão vermelho e branco, Baltazar assiste à actividade doméstica de Marta, que se move pelo quarto arrumando roupas, alisando a cama.
Neste papel Miguel representa-se gordo e meio calvo, um sibarita polido que nunca se esquece de lhe beijar a mão. A pele bronzeada, lisa, esticada como que por uma pressão interior, tem a cor e o brilho discreto do couro antigo. No Miguel dos outros dias a gordura é apenas sugerida pela ligeira curva da barriga: mas este pouco basta para que Marta, de si magra e graciosa, consiga visualizar as largas pregas de carne, a vastidão da pele de Baltazar. Marta habita um mundo onde a magreza e a forma física são de rigor; e custa-lhe a admitir a correspondência metafórica entre a compleição física de Baltazar e uma qualquer faceta real da personalidade de Miguel. Mas na sua repulsa há também fascínio, e de resto Baltazar é tudo menos grosseiro: o corpo está sempre macio e perfumado, os cabelos aparados, as unhas arranjadas. Não se trata aqui de desleixo, mas de uma sensualidade inerte que radica na presença insolente da carne. Junto dele Marta sente-se mais alta, mais esguia, quase sem seios, a pele da face repuxada sobre os ossos: como se lhe competisse a ela compensar com uma magreza de manequim a corporalidade insolente do amante.
As mãos de Baltazar emergem-lhe das mangas enormes, de mandarim. No corpo redondo e sem pelos, na quietude perfeita, há qualquer coisa de oriental; mas Marta associa-o mais a uma certa ideia que tem de Itália, de Roma, do Vaticano. Às vezes trata-o por Monsignore ou Senatore, ou traduz-lhe o nome para Baldassare.
O amante faz-lhe sinal para que se aproxime; depois beija-lhe a mão polidamente e pede-lhe com um gesto que lhe acaricie o peito glabro em que a gordura fez crescer dois seios quase femininos na forma e no tamanho. Marta começa por se despir e descalçar; o roupão e as chinelas de cetim ficam no chão, abandonados. Entreabre-lhe o roupão e começa a beijar-lhe os mamilos de homem, que mesmo erectos mal chegam a sobressair das aréolas; e estas intumescem-se-lhe sob os dedos como pequenas tâmaras castanhas. Baltazar inicia então um jogo de imitação que consiste em retribuir à amante todas as carícias, uma a uma, gesto a gesto. Marta entra no jogo, e procura no corpo dele todas as partes onde quer ser acariciada; e como cada gesto seu é fielmente reflectido nos dele, acaba por ter a sensação de estar a acariciar-se a si mesma por interposta pessoa. Afaga-lhe e beija-lhe os mamilos, e em resposta sente-lhe os dedos curtos nas pontas dos seios, e depois os lábios sinuosos, sensuais. Para melhor o acariciar senta-se-lhe ao colo; põe-lhe a mão na cintura; depois desce-lhe à curva da anca: sob a pequena mão de Marta o flanco de Baltazar é uma massa de carne elástica e consistente, que só uma larga carícia permite abarcar em toda a superfície. A textura e a firmeza da pele fazem lembrar a Marta os luxuosos sofás de couro nos clubes ingleses; e por um momento tem a fantasia de estar num desses sofás, toda nua, embebendo-o com os fluidos que lhe começam a escorrer do corpo.
É ela que o puxa para a cama. O jogo de representações a que se entregam é tão sugestivo que se Miguel, no papel de Baltazar, se deitasse agora por cima de Marta, ela sentir-lhe-ia o peso ficcional como uma realidade física. Com Baltazar é sempre ela que fica por cima, sinuosa, envolvente, ligeira, movendo-se sobre ele em todas as direcções até se lhe empalar no sexo entumescido – mais curto e mais grosso, parece-lhe, e mais escuro, do que o falo nervoso e jovem de Gino. Desta vez, num impulso, sopra-lhe ruidosamente no umbigo, como se faz aos bebés, para os fazer rir. Baltazar exibe uma bela dentadura branca num sorriso; deixa-se acariciar, mimar, despir; e o seu grande corpo nu e sem pelos, de barriga para o ar, todo aos refegos, exprime uma beatitude de bebé satisfeito. Nestas alturas o desejo de Baltazar por ela deixa de ter – pelo menos em comparação com o de Gino – foco, definição, objecto ou urgência; mas nem por isso é menos intenso. A erecção torna-se-lhe menos firme e é a parte superior do corpo que se lhe enrubesce, como a de uma mulher no auge da excitação.
Marta, a quem as mulheres não atraem, tem contudo prazer nesta faceta feminina do amante. A redondeza de Baltazar lembra-lhe a forma esférica, perfeita, do andrógino de Platão. E talvez por isso gosta de fazer amor com ele como as mulheres o fazem – imagina-o ela – umas com as outras. Beija-o, acaricia-o, esfrega-se nele suavemente; e gosta especialmente de roçar levemente o sexo no dele numa carícia que não obriga a nada. Como quem dá um beijo com outros lábios. E com efeito: em casa dos pais de Marta havia uma criada analfabeta que por pudor ou poesia chamava à vagina a boca do corpo. É com os lábios ternos desta boca que Marta aflora a ponta do sexo de Baltazar; mas só por um momento, para não perder o controle e não dar por si a esfregar-se violentamente nele. Para melhor se controlar afasta-se ligeiramente, sem deixar de lhe beijar a face, de lhe acariciar o pescoço e o peito.
Cada um sente ainda no sexo a memória do outro – a memória ainda presente de um outro sexo material e vivo, aquiescente, faminto; e a certeza de que o contacto se restabelecerá em breve transforma o afastamento num prazer mais pungente. Entretanto Marta entrega-se aplicadamente aos beijos, às carícias, debruçada sobre o corpo do amante. Os seios pendem-lhe ternamente sobre a pele bronzeada. E pouco a pouco recomeça a aproximar o sexo do sexo dele. Baltazar é de todos, logo seguido de Jorge, o que mais profusamente a beija quando fazem amor; e Marta tem de novo a sensação de que ele estaria disposto a prolongar indefinidamente o rosário de beijos que lhe dá, de modo a fazer deles, não um preliminar do amor, mas a sua própria substância. E ama-o por isso. Mas não deixa de se dar conta da sua própria excitação, em breve irresistível; e repara também no pénis do amante, ao léu, reteso e virado impudicamente para cima. Como o de um bebé-homem que se prepara para fazer xixi, num arco glorioso e cristalino, no próprio momento em que se lhe muda a fralda. E este ponteiro endurece ou desintumesce ao sabor das carícias que ela lhe faz no peito ou na cara.
Chegou o momento de Marta se deixar penetrar. Por um momento beija o pénis do amante. Só por um ou dois segundos: o prazer de lhe ejacular na boca oferece-o ela algumas vezes aos outros três – por vezes até a Gino, que o aceita com alegria e gratidão – mas nunca a Baltazar. Assim que este sente no sexo a tensão dolorosa de uma erecção completa puxa-a para cima de si e ajeita-a segurando-lhe as ancas, meio agachada. Marta baixa os quadris sobre o falo erecto e começa a executar um movimento de vai-vem que rapidamente ganha em rapidez e amplitude. Mas agora é Baltazar que assume o controlo. À brusquidão sôfrega dos movimentos dela responde ele com um discreto, cruel retraímento, um afastar do corpo que lhe torna os movimentos mais lentos e mais suaves. Não é um movimento débil, pelo contrário: mas a sua força está toda na amplitude, não na rapidez. Marta sente-lhe as mãos nos quadris, sujeitando-a, prendendo-a; e dá largas à sua ânsia num lançar para trás da cabeça, num furioso sacudir dos ombros e dos cabelos, num arquejo impaciente. Se o amante lho permitisse inclinar-se-ia toda para trás, vergando-lhe o pénis dolorosamente para baixo: poderia assim sentir no ponto exacto a forte pressão da glande que o corpo lhe reclama. Baltazar compreende-a bem, mas não lhe faz a vontade. Os olhos, fixos nos dela, estão mais serenos e mais trocistas do que nunca, atentos a todas as expressões de sofrimento ou de gozo.
Marta, que ainda há pouco tratou Gino com a mesma crueldade, acolhe sem protesto esta privação. Mas não sem luta. Suada, macerada, desgrenhada, os cabelos pretos e compridos caídos sobre os olhos; um ricto de esforço na expressão; nos cantos da boca dois vincos de dor ou de prazer; selvagem, concentrada, montada no amante como um apache em guerra, lá vai Marta à desfilada atrás de uma apoteose que tarda, que tarda. A inércia obstinada de Baltazar frustra-a para além do suportável. Sabe muito bem que toda esta contenção tem um objectivo, mas não quer saber de objectivos: quer simplesmente correr até ao fim do fôlego, sem cuidar de saber que género de desenlace vai encontrar na meta; e ele, ele, em vez de se lançar com ela, honestamente, na mesma nobre cavalgada – prossegue, com uma ponderosa determinação que a exaspera, um objectivo.
Um objectivo: a própria palavra é pedestre e vil. O ritmo é, contudo, inexorável, e Marta sente que o seu prazer não vai tardar: há nos movimentos do amante uma força que o convoca, uma força latente. É ela que permite a Baltazar passar-lhe todo o comprimento do pénis pelo clitóris, vagarosamente, sem perder a erecção; e permite-lhe também tocar-lhe na zona da vagina em que ela mais quer ser tocada. Mas só quando entende fazê-lo, e só com a pressão e a duração que entende. Se Marta fosse mulher de dizer impropérios cobriria agora o amante dos piores. Em vez disso chora; e o orgasmo que a assola, quando finalmente vem – convocado só por ele, ordenado só por ele – cai sobre ela como um vasto crepúsculo, enorme e incompreensível como uma calamidade. Como orgasmo é muito mais intenso do que aquele que teria resultado momentos antes, se tal lhe tivesse sido permitido, da sua própria acção; e Marta acolhe-o com um grito prolongado; mas é um grito tanto de revolta como de prazer, e o sorriso com que agradece ao amante não obsta a que lhe molhe o peito com lágrimas de cólera.
Allegro marziale
Gino e Baltazar são seres estivais, muitas vezes suscitados pelo mar ou pela praia. Já Leonardo costuma surgir em ambientes outonais, sugerido às vezes pela chuva lá fora, outras pelo sol dourado de Outubro a entrar no quarto. Leonardo tem afinidades com as adegas de pedra, com o calor das lareiras, com as mesas robustas onde os queijos, os pães e os presuntos despertam apetites saudáveis. Mas também gosta das mesas sensuais que a amante lhe apresenta: mesas requintadas, com vinhos velhos, velas festivas, grandes guardanapos de linho; com morangos, uvas, mirtilos, framboesas; e com foie gras, caviar, champanhe.
Dos amantes virtuais de Marta ele é o que mais raramente se manifesta. Anuncia-se geralmente por uma larga gargalhada, por um atirar para trás da melena, ou por uma ordem peremptória dada num tenor viril – traços estes que nunca deixam de a surpreender porque correspondem, em Miguel, a uma zona habitualmente oculta da sua natureza.
O nome pôs-lho ela num fim de Verão. Tinham combinado ir à praia, à Figueira, mas o tempo ameaçava chuviscos e resolveram antes visitar Conímbriga. Miguel estava de calções e sandálias, revelando as pernas grossas, torneadas. Os pés pareciam tão sólidos como as lages antigas da estrada. “Se em vez de calções trouxesses um daqueles saiotes,” disse-lhe Marta, “serias um perfeito legionário.” E com efeito: com o rosto escanhoado, as pernas nuas, o cinto largo de couro, as grossas sandálias bem assentes no chão, Miguel tinha um ar de militar antigo. Mesmo o cabelo desgrenhado acabava por não destoar: conjugado com um certo gesto muito dele, um atirar para trás da cabeça, tornava-se juba de leão, penacho de guerreiro.
Depois, no quarto do hotel, exigira de imediato vê-la nua; e aceso o desejo, cevara-lho na carne tão prontamente mostrada; e tudo isto sem hesitação, com uma autoridade tão alegre e tão inocente que quaisquer objecções se encontraram desarmadas à partida.
“ O que tu fazes é devassar-me toda. E deitas-te a mim como um leão sobre a presa. Patife. Ainda por cima deixas-me toda excitada,” disse-lhe ela no fim. E mais tarde, deitados os dois a conversar, recapitulando com palavras e risos o amor que acabavam de fazer, o nome tinha surgido de repente:
“É, meu amor: exactamente como um leão. Devias chamar-te… sei lá, Leónidas, Leopoldo… não: Leonardo. Leonardo, o legionário.”
Foi a Leonardo que coube cumprir uma promessa que Miguel fizera a Marta, em Heidelberg. Estavam os dois na cama em casa dele. Tinham feito amor longamente e agora estavam a conversar, cansados e felizes. Ele, que não sabia estar com ela sem lhe tocar, acariciava-lhe a abertura do ânus. “Da próxima vez que estivermos juntos hei-de possuir-te por aqui.” Marta não respondeu. A razão por que ele a queria possuir por trás sabia-a ela, e não podia deixar de estar de acordo: não se tratava tanto do prazer físico que ele pudesse obter, mas sim de deixar claro que nenhuma parte do corpo dela lhe podia estar vedada.
Mas no encontro seguinte, em Brugges, Miguel não cumpriu a promessa. Nem depois, no dia em que tomou formalmente posse dela.
Mas desta vez sim. Era Outono. Ao chegar de Heidelberg entrou no apartamento de Marta com a voz vibrante e a passada firme de Leonardo. Passearam toda a tarde, e quando chegaram casa Marta preparou uma refeição com queijo, fruta, caviar dinamarquês e vinho tinto. O duche tomaram-no juntos. Jantaram sentados aos topos de uma mesa de vidro, embrulhados em robes; e o deslizar do tecido descobria-lhes por vezes, a ela um seio nu, a ele o topo das coxas. O trajo informal contrastava com o requinte da mesa: Marta tinha-se esmerado na escolha das louças e dos talheres, no dispôr das velas e dos guardanapos, no arranjo das flores.
Depois de jantar foram os dois para o sofá; e pouco a pouco, entre beijos e carícias, resvalaram para o tapete do chão. Quase sem notar tinham acabado por ficar nus; e agora colavam-se um ao outro, a todo o comprimento do corpo. O leitor de CD’s tocava o primeiro andamento de “Os Planetas”: Marte, o portador da guerra. As mãos de Leonardo percorriam as costas de Marta da nuca ao fundo das nádegas, devassando-a, e os dedos introduziam-se-lhe entre as coxas, separando-as, espremendo-as; e por fim acariciando-lhe o sexo ao longo dos grandes lábios, dos pequenos lábios, à volta do clitóris.
Os pequenos movimentos suaves e redondos que Marta fazia com os quadris foram-se tornando cada vez mais convulsivos. Leonardo inclinou-se para lhe beijar o sexo; e até nisto era diferente dos outros, de Baltazar por exemplo: enquanto este a titilava com pequenas estocadas da língua, Leonardo sorvia-lhe o clitóris juntamente com uma parte dos pequenos lábios, como se os quisesse beber; e a língua devassava-lhe a taça do sexo, ao longo da vulva, à boca da vagina. Foi assim que Marta se veio, sem um gemido, só com a respiração arquejante e os movimentos sacudidos dos quadris a traír-lhe a turbulência dos sentidos.
Quando Leonardo lhe olhou para a cara viu-lhe os olhos cheios de lágrimas.
“O que tu me fazes,” disse Marta. “As coisas que tu me fazes.”
Sem uma palavra Leonardo começou a beijar-lhe a cara e os olhos, debruçado sobre ela. Já não estavam colados um ao outro; mas Marta sentia-lhe ainda o falo insatisfeito e erecto, passeando-lhe sobre as coxas, sobre o ventre. Assim que o teve ao seu alcance pegou-lhe com as suas pequenas mãos; e sem o largar começou a beijar o corpo do amante, primeiro o peito, os mamilos, depois o ventre ligeiramente arredondado, por fim as coxas. A música continuava a tocar. O primeiro andamento chegara ao fim e um trilar de campaínhas anunciava o segundo: Vénus, o portador da paz.
Quando Marta tomou na boca o sexo do amante sentiu mais uma vez como mudavam as carícias que ele lhe fazia com as mãos. De firmes e determinadas – carícias de Leonardo, mãos de dono – tormavam-se agora hesitantes; e no suspiro que acompanhou esta mudança ia todo um mundo de rendição e de abandono. Durante muito tempo continuou a beijá-lo, a chupá-lo, disposta a retribuir o prazer que ele lhe tinha dado. Mas ao fim de algum tempo sentiu que o pénis se lhe tornava menos duro e que ele a puxava pelos ombros: “Anda cá.”
De novo colados um ao outro, coxas contra coxas, os seios dela contra o peito dele, a mão de Leonardo veio insinuar-se-lhe por entre as pernas, acariciar-lhe o sexo, o rego entre as coxas, e por fim, por longos minutos, insistentemente, o ânus. Mão de dono, de novo. “Quando estiveste em Heidelberg prometi-te que te havia de possuir por aqui,” disse-lhe ele num murmúrio rouco. “Vai ser agora. Se consentires.”
Marta escondeu a cara no ombro do amante. “Sim,” respondeu, numa voz quase inaudível. E enquanto ele se dirigia à casa de banho deitou-se de barriga para baixo, o rosto escondido na curva do cotovelo. Ao regressar Leonardo abriu uma pequena caixa de vaselina – a mesma que tinha utilizado na visita anterior para a possuir entre os seios – e lubrificou-lhe a abertura anal. Depois fez o mesmo a si próprio e apontou-lhe-lhe o pénis firmemente à entrada do ânus; passou-lhe o braço à volta do corpo e começou a acariciar-lhe o clitóris ao mesmo tempo que forçava a entrada a pouco e pouco. A lubrificação revelou-se eficaz; a penetração deu-se mais facilmente do que ambos esperavam; e ao fim de pouco tempo Marta ousou mesmo mexer os quadris como quando ele a penetrava pela outra abertura. A mão que lhe acariciava o sexo parecia-lhe agora, absurdamente, mais devassadora do que o falo que se lhe movia nas entranhas. Na fantasia de Marta Leonardo tornou-se de novo um legionário, um centurião, e ela própria um tenro escravozinho capturado, à falta de mulheres, para serviço dos oficiais. E talvez a fantasia dele estivesse a ser a mesma: a mão dele não se limitava a titilar-lhe o clitóris com as pontas dos dedos, mas abarcava-lhe o conjunto todo da vulva como quem toma o peso a um jovem pénis e respectivos testículos. Mas Leonardo não se fantasiava a fazer amor com um rapazinho. Se agarrava o sexo todo da amante era porque assim o sentia melhor; e era sem ambiguidade um sexo de mulher. A frescura e a redondeza das nádegas de Marta, a resiliência com que lhe amorteciam os embates violentos, as sonoras palmadas do pélvis, sugeriam-lhe não um rapazinho, mas as formas calipígias das mulheres do Sul, cântaros à cabeça, robustas, meneando as ancas sob um sol antigo.
Marta sentiu que os movimentos do amante se aceleravam, que a respiração lhe rouquejava, e que ele se lhe esvaía no fundo das entranhas. Na posição em que estava não podia vê-lo, só podia imaginar de memória as feições descompostas, a adoração e o riso; mas ouviu-lhe a respiração arquejante e as palavras desconexas e o quase grito que era quase uma oração. Ela própria não teve orgasmo; e talvez por isso soube-lhe bem que o amante se não retirasse imediatamente de dentro dela, que se deixasse ficar até que a progressiva flacidez do sexo operasse por si só a separação inevitável.
“Como estás?” perguntou-lhe ele por fim.
“Estou bem. Foi um pouco estranho. Estou contente.”
A música ia agora no quarto andamento: Júpiter, o portador da alegria. E depois de os amantes se virarem um para o outro, de se voltarem a acariciar, de conversarem e rirem, ela ainda lhe disse em voz baixa: “Quero dizer-te uma coisa: isto que me fizeste hoje – podes fazer-mo mais vezes, se quiseres.”
Adagio
E finalmente havia Jorge. Muito velho, muito alto, muito magro, e com uma pele de pergaminho, branca como a de um monge irlandês que há anos não saísse da sua biblioteca. Nos momentos de intimidade doméstica Jorge nunca escolhia um roupão como o de Baltazar, nem a nudez insolente de Leonardo ou Gino, mas um robe de algodão cinzento que era como um hábito monástico. Os pés grandes e ossudos, muito brancos, sobressaiam do cinzento escuro da orla.
Jorge era o asceta. Aparecia por vezes quando Marta e Miguel trabalhavam na mesma sala, absortos nas suas tarefas mas comprazidos com a presença pressentida um do outro. Por vezes Marta via-o levantar os olhos do livro que estava a ler e sorrir-lhe um sorriso tranquilo. Os olhos que a olhavam por cima dos óculos em meia-lua começavam já a ser olhos de homem velho, aquosos, e de um verde mais claro do que os de Miguel. Quando sorria de certa maneira, ou quando a luz do dia lhe incidia mais directamente sobre a face, chegavam a parecer azuis, e Marta lembrava-se da beleza emaciada de certos velhos, da sua pele quase transparente, do seu olhar de meninos. Para Jorge ficar completo só faltava a Marta imaginar a cabeleira ainda comprida e ainda desgrenhada, mas já muito branca e muito rala, deixando entrever o rosado do couro cabeludo.
Faziam amor quase só quando ela se lhe sentava ao colo, feiticeira, com gestos de menina. Os anos que ele acrescentava, no seu papel de Jorge, à sua própria idade, tirava-os ela à sua: vinte ou vinte e cinco anos para cada lado somavam cinquenta de diferença, e davam-lhes a deliciosa sensação de viverem uma relação incestuosa de avô e neta. Quando estava com Jorge Marta gostava de se vestir com uma blusa branca e uma saia curta de colegial, ou então, mais confortavelmente, com uma T-shirt do rato Mickey e umas peúgas de lã. Jorge tomava-a nos braços inesperadamente fortes e interrogava-a sobre as pequenas coisas do dia a dia. Enquanto falava com ela procurava-lhe com a mão ossuda o espaço entre as coxas. Depois masturbava-a; e ela abafava os soluços de excitação escondendo a cara no ombro dele.
Por vezes estendia-se por cima dela, quase cego, e tacteava-a como se só com as mãos lhe fosse possível reconhecê-la com suficiente certeza. Marta guiava-lhe o pénis semi-erecto para o lugar exacto. Esta semi-erecção mal bastava para a penetração inicial, mas uma vez transposto o primeiro portal tornava-se tão firme como a de um jovem. Jorge demorava sempre muito tempo a ter orgasmo, ou nem chegava a tê-lo; os seus movimentos eram por vezes débeis, e frequentemente tinha necessidade de descansar a cabeça no travesseiro, de modo que o tempo que demorava não significava para ela qualquer garantia acrescida de atingir o seu próprio climax.
Podia assim acontecer que nem um nem outro se viessem, e que o amor começado se lhes transformasse a pouco e pouco numa longa sessão de mimos e carícias – até que, quem sabe, Leonardo surgisse de repente, ou Baltazar, ou Gino, e a derrubasse de costas e se derramasse nela. Mas em vez disto podiam simplesmente adormecer os dois; ou podia Jorge começar a acariciá-la ou a beijá-la ternamente no sexo já dorido, tão ternamente e com tanta paciência que Marta acabava finalmente por encontrar o orgasmo, um orgasmo intenso, sereno, sem lágrimas.
Outras vezes podiam estar os dois sentados no sofá, talvez a ler ou a escrever. No leitor de CD’s podia estar a tocar, por exemplo, o quinto andamento de “Os Planetas”: Saturno, o portador da velhice. A mão de Marta insinuava-se então no roupão cinzento de Jorge e procurava-lhe o sexo flácido; e ele sorria-lhe, apertava-lhe a coxa, conversava com ela. Porque era sobretudo de palavras o amor que faziam. De todos os avatares de Miguel, Jorge era o único a ter perfeita consciência de como é perigoso misturar sexo e literatura; mas também era ele que mais prontamente corria, e a fazia correr, este risco. No panteão de Marta era ele o guardião dos labirintos e das ficções: todos os outros, incluindo Miguel, derivavam dele a vida que os animava. Geralmente a conversa retomava um qualquer assunto iniciado durante o dia, e em breve estavam os dois tão empenhados nela que Marta se admirava quando o sexo do amante lhe endurecia na mão como se tivesse uma vida independente da dos órgãos da fala.
Foram assim ganhando o hábito de se masturbarem enquanto conversavam, geralmente tão pouco interessados na conclusão da carícia como na da conversa; e foi nestas sessões que ele a contagiou com a sua predilecção por Edgar Allan Poe, Wilkie Collins, Stevenson. Por vezes contava-lhe histórias em que o maravilhoso ingénuo se unia à perversidade extrema; e se Marta chegava entretanto a um orgasmo, no caso de Jorge acontecia frequentemente que a erecção lhe desaparecia tão gradualmente como tinha aparecido, perdida nos labirintos de palavras em que os dois se tinham embrenhado.
Coda.
Gino, Baltazar, Leonardo, Jorge. Quatro nomes, quatro deuses em que o homem de Marta se compendiava para melhor se definir e para melhor a amar. Nenhum deles tinha a complexidade de Miguel: mas desde quando são os deuses tão complexos como os homens que os criaram? Marta dava-se conta que ao representar estes papéis o amante se lhe representava como se via a si próprio e como queria, ou temia, que ela o visse. Por ser Jorge, Leonardo, Baltazar ou Gino, o amante de Marta não deixava de ser Miguel: antes pelo contrário. Todos eles eram ficções, mas nenhum deles era mentira.
E de resto ela própria, Marta, se tinha durante muito tempo representado ao amante através de Mariana; e longe de com isso perder identidade, ganhara-a. Nas representações do amante, como na sua, ia uma dádiva. E nos lugares que ela amava – fosse no Algarve, num quarto branco de adobe, sentindo entrar pela porta o cheiro das alfarrobas; ou no Verão de Roma, num hotel de Roma, com varanda sobre a dolce vita de Roma; ou num pinhal à beira-mar, sobre uma manta, banhada nos últimos calores de um sol de Outono; ou ainda no Inverno, acolhida aos labirintos de uma biblioteca famosa – quando Miguel estava com ela eram estas representações que o completavam, e lhe conferiam a verdade que era a dele, e que o lugar exigia.
(Publicado no Blogger a 22/08/05)
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