VOTO DE CASTIDADE
Raul conhecia finalmente a história de Milena Cavic desde o dia em que tinha sido raptada, aos onze anos, em Pristina. Este conhecimento não lhe deu o prazer da curiosidade satisfeita, tal como a morte horrível de Zerberov não lhe tinha dado o prazer da justiça cumprida. O mundo estava apenas um milésimo de milímetro mais direito, era tudo. Sentia, como o espectador duma tragédia, piedade e terror. Teresa sentia o mesmo, mas transmutava-os numa solicitude prática de que Raul não seria capaz.
– Hoje não vais dormir a casa – disse Teresa. – Dormes aqui, no quarto de hóspedes.
– Claro – concordou Raul. – Vou ajudar a fazer a cama.
– Não – disse Teresa, peremptória. – A Milena ajuda-me.
Pelo tom de voz de Teresa, Raul reconheceu que esta decisão tinha sido tomada por uma daquelas razões femininas que os homens raramente compreendem mas se não forem estúpidos têm em conta.
– Está bem – respondeu. – Eu fico aqui um bocadinho a ler e a ouvir música.
– É melhor – disse Teresa. – Queres um whisky?
E antes que ele tivesse tempo de responder deitou-lhe um pouco de Laphroaig num copo e serviu-lho de joelhos, formalmente, como se não estivesse na sala mais ninguém além deles.
Quando as duas reapareceram, Raul notou não se tinham limitado a arrumar o quarto: Teresa tinha mudado de roupa e estava agora nos seus mais sumptuosos trajes de escrava; Milena estava vestida de modo semelhante, com roupa de Teresa, e cheirava a sabonete. Mas a transformação mais notória que Raul notou nela foi a expressão do rosto e do corpo: não vinha alegre nem animada, longe disso, mas já não tinha aquela palidez nos cantos da boca que exprime medo ou tensão extrema. Olhando para aqueles olhos enormes, para o rosto de boneca, para o corpo esguio, Raul assombrou-se de novo: como podia alguém aparentemente tão frágil sobreviver àquilo a que ela tinha sobrevivido?
Quando Teresa se sentou no chão aos pés dele, Milena pareceu não ver nisso nada de estranho e imitou-a.
– Pronto, meu senhor, aqui estamos – disse Teresa. – O que é que vamos fazer?
Raul nem por um momento tomou à letra esta pergunta. As decisões mais importantes já tinham sido tomadas, de certeza, durante as arrumações e as trocas de roupa, e o que agora se esperava dele era que lhes apusesse a chancela simbólica da sua autoridade masculina.
– Milena – começou. – Primeiro quero dizer-te que podes ficar nesta casa os dias que entenderes. Não tens que decidir nada já sobre a tua vida…
– Non voglio mai tornare a Servia – interrompeu-o a jovem. – Os meus pais já não me conhecem. Eu já não os conheço. Deixaram-me com Zerberov. Mio fratello è morto.
– Não queres ficar aqui no Porto? Tens uma casa para viver, tens amigos para te ajudar. Tens trabalho? Se não tens, podemos ajudar-te a procurar. Também te podemos ajudar com dinheiro, se precisares.
– Serei sua schiava, como Teresa?
Pelo sobressalto de Teresa ao ouvir esta pergunta, Raul percebeu que afinal nem tudo tinha sido combinado com antecedência pelas duas mulheres.
– Não, não serás minha escrava – respondeu. – Nunca mais serás escrava de ninguém, se não quiseres. Entendeste? Nunca mais. Mai più.
Milena acenou que sim. Sim, entendia. Era o que Teresa lhe tinha dito, mas custava-lhe a acreditar que algum homem a quisesse ajudar em troca de nada. Tinha um lugar para viver, mas não queria voltar lá sozinha. Não sabia se tinha dinheiro: Zerberov tinha-lhe tirado o cartão do banco quando a tinha deixado em casa do Comendador. Zerberov tinha dinheiro numa gaveta, muito dinheiro, mas a polícia tinha levado tudo quando revistara a casa. Não sabia se ia conseguir arranjar mais trabalho como pianista, era sempre Zerberov quem fazia os contratos. Mas estava disposta a trabalhar fosse no que fosse, só como putana é que não. Mai più. Schiava, sim, se o senhor quisesse, mas só dele; e ficava contente por o senhor não querer.
[…]
− Tinha pensado em passarmos pelo supermercado para fazermos umas compras para o teu apartamento – disse Raul. – Mas é tarde e estamos todos cansados. Porque não dormes outra vez em nossa casa?
Milena já devia ter discutido o assunto com Teresa, porque acedeu rapidamente. Em casa, Teresa pôs a touca e o avental e fez um jantar rápido, ajudada por uma Milena que depressa revelou não fazer a menor ideia de como se havia de mover numa cozinha, mas que compensava a falta de jeito com uma tocante boa vontade. Depois de jantar, Milena pediu licença e retirou-se para o quarto, alegando cansaço.
− Posso ir com ela, meu senhor?
Era óbvio que queriam conversar as duas sem a presença dele.
− Vai, disse Raul. – Eu fico aqui a ler.
A conversa durou seguramente mais do que uma hora. Por fim Teresa regressou à sala e sentou-se aos pés de Raul.
− Tenho uma solução completamente louca para a situação da Milena – anunciou. – Porque é que ela não há-de ser a nossa empregada doméstica?
− Porque seria uma completa loucura – disse Raul. – Porque duas mulheres numa casa com um homem complicam sempre as coisas, introduzem uma tensão sexual difícil de gerir. Porque eu só quero ter uma escrava. Porque duvido que ela saiba fazer seja o que for numa casa. Dito isto, estou disposto a ouvir-te.
− Então vou começar por uma coisa que ela me disse e que eu nunca acreditaria se me tivesse sido dita por outra mulher. Diz ela que até ser velhinha e morrer (foi assim que ela pôs as coisas), nunca mais vai ter relações sexuais com um homem. Nem com um homem, nem com uma mulher, nem com ela própria. Será como se não tivesse órgãos genitais. Fiquei tão espantada que lhe disse, a brincar, que então o melhor era ir a um país africano onde lhe fizessem uma excisão total do clítoris e dos pequenos lábios, e lhe infibulassem a vagina. E foi nesta altura que me assustei a sério com ela: disse-me que não era preciso, que já tinha feito isso tudo aqui, apontando para a cabeça, e aqui, apontando para o coração. Uma miúda de vinte anos a dizer-me isto, e eu acreditei. Podes dizer-me porque é que eu acreditei?
Raul não respondeu imediatamente. Em que pensamentos se estaria a perder? Por fim, como se falasse para si mesmo, disse:
− Há sempre quem faça as coisas mais improváveis…
Teresa chamou-o à terra:
− Sim, mas geralmente só acreditamos nessas coisas depois de feitas.
− Vou-te contar uma coisa sobre o país de Milena. A população de origem albanesa, especialmente nas zonas rurais, não se rege pelas leis do Estado, mas sim por um código elaborado no século XV pelo príncipe Lekë Dukagjini…
− Como tu te consegues lembrar dum nome desses…
− Acredita, não é possível viver muito tempo no Kosovo e tentar fazer cumprir as leis sem ficar com este nome na memória. De qualquer modo, este código chama-se o kanun, e estabelece, entre muitas outras coisas, que, numa família onde não haja homens adultos, uma mulher se pode transformar em homem. Para isso precisa de fazer uma jura de abstenção sexual para toda a vida. Com isto adquire todos os privilégios de um homem: governar a família, andar armada, viajar sozinha, entrar nos cafés…
− Coisa estranha…
− Há coisas mais estranhas no mundo. Ora acontece que a Milena não é, nem de origem rural, nem albanesa, mas sim sérvia e urbana, e portanto em princípio nada disto se lhe devia aplicar. Se tem algum conhecimento do kanun, o mais provável é que seja uma ideia muito vaga, e que nem se dê conta que o voto de castidade que fez se possa inspirar nele… mas por outro lado andou com os albaneses muito tempo, e estes costumes nunca são completamente estanques. Tu dizes que acreditas nela, e eu penso: porque não hei-de acreditar também? O que não entendo é o que isso tem a ver com ela ser nossa empregada. Ou antes, entendo, talvez resolvesse o problema da tensão sexual aqui em casa, mas diz-me: qual de vocês duas foi a da ideia?
− Foi ela.
− E em que condições?
− Isso decides tu. A Milena só pediu que lhe deixássemos tempo para continuar a tocar nos bares… e fez questão de deixar claro que o tal voto de castidade só se aplica a ela própria, que tudo o que visse acontecer entre nós seria como se não tivesse visto nem ouvido.
− E tu, gostavas?
− Gostava, meu senhor.
− Então, se ela ainda estiver a pé, chama-a cá.
Milena apareceu, ainda de jeans e blusa, como tinha andado todo o dia desde que tinha trocado de roupa em casa.
− A Teresa disse-me que te tinhas oferecido para nossa empregada. Porque é que queres ser nossa empregada?
− Preciso de ganhar dinheiro para viver, senhor. O que ganho a tocar piano não chega.
− Então vai ser assim: vais cozinhar, servir à mesa, lavar, limpar, arrumar e mais tudo o que eu ou a Teresa dissermos. Vais usar uma farda de criada, como a Teresa, mas nas horas de serviço também é para usar fora de casa. Em casa andas sempre descalça, na rua usas sapatos brancos sem salto. Não bates às portas, nem à do meu escritório: nada do que esteja lá a acontecer é da tua conta.
− Sim, senhor. Se o senhor ou a Teresa estiverem sem roupa…
− Se eu ou a Teresa estivermos nus, ou se estivermos a fazer amor, ou se eu estiver a castigá-la, entras na mesma e fazes o que tiveres a fazer. Só tens que ter o cuidado de não nos distrair. Esta é a minha casa, a Teresa é a minha escrava, e quero estar tão à vontade contigo cá dentro como estaria sem ti. Entendeste tudo o que eu te disse?
− Sim, senhor. Lei vuole che io sia come um gatto, que entre, que saia, e que por minha causa as pessoas não parem de fazer o que faziam. Sì, lo farò, non è difficile per me.
– Em teoria, o teu horário é 24 horas por dia, sete dias por semana. Na prática, não terás um horário apertado. Serás dispensada à noite quando precisares. Quando estiveres cansada, podes levantar-te tarde. Terás oito dias livres por mês, ou dez, ou até quinze, não faço muita questão, mas será quando mos pedires e eu tos der. Também terás férias todos os anos, ou várias vezes por ano, conforme mas pedires e eu tas der. Se achares que não te estou a dar tempo livre que chegue, voltamos a falar. Quero que leias todos os dias pelo menos vinte páginas em português: tens livros e dicionários no meu escritório. Tens muitas coisas tuas no teu apartamento?
– Não, signore, só a minha roupa, a roupa de cama e algumas coisas pequenas. Ah, e também os meus discos compactos e a aparelhagem, e alguns livros.
– Se a Teresa e tu esvaziarem o roupeiro do teu quarto, terás onde pôr todas as tuas coisas?
– Si, signore.
– Muito bem. Amanhã de manhã, tu e a Teresa vão comprar as tuas fardas e os teus sapatos. Depois vão ao teu apartamento buscar as tuas coisas. Não é preciso trazerem tudo, o arrendamento só vence no fim do mês. A seguir começam a arrumar tudo aqui em casa para poderes cá ficar.
– Sim, senhor – disse Milena.
– Sim, meu senhor – disse Teresa.
– As refeições serão servidas por ti e pela Teresa, quando eu comer sozinho, ou só por ti, quando eu comer com ela. O teu horário começa de manhã às oito, mas como a Teresa gosta de ser ela a servir-me o pequeno-almoço, a maior parte das vezes poderás ficar até mais tarde na cama. À noite, a cozinha tem que ficar arrumada, ou pela Teresa e por ti, ou só por ti. A limpeza e arrumação do quarto dos castigos é da responsabilidade da Teresa, mas tu também podes ajudar. Os recados, a cozinha, o tratamento da roupa e a limpeza do resto da casa são coisas da tua responsabilidade, embora a Teresa te possa orientar e ajudar. De acordo?
– Sim, senhor.
– Ganharás quinhentos euros por mês, mais alojamento, mais comida. Comerás o mesmo que nós, na quantidade que quiseres. Com este dinheiro, podes manter o teu apartamento, mas não to aconselho: não precisas dele para nada. Finalmente: como vais ser aqui empregada doméstica, ou seja, uma pessoa livre, e a Teresa é minha escrava, poderás talvez imaginar que vais estar acima dela…
– Oh, não, signore!
– Ainda bem. Para mim, a Teresa pode ser menos do que a poeira debaixo dos meus pés, mas para ti ela é a minha mulher, a mulher que eu amo, e deves obedecer-lhe como se fosse a mim.
– Si, signore!
– Então estamos entendidos. Tens alguma pergunta a fazer-me?
– Não, signore. Ma posso dire una cosa?
– Diz lá.
– A me, mi sembra che il vostro amore è bello. Molto, molto bello.
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